Foi uma segunda-feira diferente para mim e para todos, naquela semana que iria aprender muito sobre economia e sociedade, em uma cidadezinha quase perdida entre dois morros, que estava sempre esperando que algo novo acontecesse.
Aquele movimento inusitado começou cedo no vilarejo. Naquela hora calma e silenciosa em que as crianças vão ao caminho da escola e os trabalhadores pegam o rumo do trabalho. Naquela mesma hora é que se viu uns caminhões meio velhos chegando pela estradinha de barro, levantando aquela poeira que se via de longe. Vinham descendo a colina, devagar, uns cinco ou seis, mais dois fuscas e uma kombi caindo aos pedaços.
Ao passar pela rua principal da cidade, já ligaram os alto falantes de um dos fuscas que anunciava a todos: “Respeitável público. O circo está chegando na sua cidade. Venha se alegrar com os palhaços, trapezistas, coristas e muita música, luz e magia. O espetáculo vai começar”.
Foi o suficiente pra que não se falasse de outra coisa no resto do dia. No meio da tarde já havia um burburinho correndo na cidade, porque essa gente estava procurando interessados em trabalhar por alguns dias na montagem e, depois, na desmontagem do circo. Estavam precisando de gente forte e disposta. A forma de pagamento era bem clara. Dez ingressos por quatro dias de trabalho.
Desse jeito é que conseguiram 15 desocupados como eu que tinha terminado o ginásio e ainda não sabia o que fazer da vida.
O terreno ficava ao lado da Igreja, onde começamos a cavar buracos bem fundos. Ali foram cravados aqueles mastros enormes por onde foi estendida e içada uma enorme tenda que seria a casa do Circo por duas semanas.
Na caravana havia muita gente. Acho que umas trinta pessoas faziam parte daquela trupe. Gente bem esquisita. Bem diferente do nosso cidadão quadrado e padrão. Mas era tudo muito divertido.
Depois de dois dias de trabalho acenderam-se as luzes da bilheteria e a mágica começou.
Era um circo sem animais. Tinha palhaços, bailarinas, mágicos, atiradores de facas, trapezistas e banda de música. Tudo muito animado, colorido e divertido.
Os assuntos na cidade é que ficaram mais diversos naqueles dias. Falavam das piadas dos palhaços, das roupas provocantes das bailarinas, da coragem daquela moça que ficava esperando as facas serem cravadas ao redor do seu corpo. Ninguém conseguia desvendar como tudo aquilo saia da cartola do mágico. Teve gente apaixonada pelas coristas, pelos trapezistas e até pelo palhaço, vejam só. Foi muita fantasia para duas simples semanas de um ano comum e vagaroso.
Entre a montagem e a desmontagem de toda a estrutura, foram dez dias de espetáculos. Os primeiros dias com a casa cheia e os outros nem tanto. Depois disso, foram embora do mesmo jeito que chegaram. Deixando aquela poeira fina pela estrada.
Até hoje me lembro que muito me intrigava aquele jeito de viver. Sem lugar fixo. Sem relação estável com lugares e pessoas. Era uma comunidade itinerante, com vida própria, mas que, por duas semanas, fez parte da vida e dos sonhos da nossa gente. Aprendi algumas coisas com aquela experiência. Principalmente a noção de que economia é uma ciência social.
Aquele circo era uma empresa. E, como toda empresa, visava lucro. Porém, enquanto esteve instalado naquele lugar, no meio do nada, contratou pessoas em troca de ingressos. Depois fiquei sabendo que o terreno onde o circo ficou era da prefeitura, que não cobrou aluguel, mas exigiu que fosse realizada uma sessão gratuita para as crianças da única escola pública da cidade. A energia elétrica foi suprida pela Igreja que recebeu em troca uma pequena doação para a reforma do telhado. Os integrantes do circo fizeram compras nos armazéns da cidade e frequentaram os bares e o cinema da praça central. O público que compareceu aos espetáculos pagou seus ingressos e recebeu em troca um mundo novo para encher os olhos e afagar a alma.
Houve uma troca muito eficiente e igualitária entre todos os envolvidos, que muito mais tarde fui descobrir que eram os “stakeholders” ou “partes interessadas”. Todo o ecossistema que se formou ao redor daquele evento foi um movimento econômico e social positivo e vibrante.
Hoje, depois de tanto tempo, eu lembro daquele momento com saudades da experiência, mas principalmente do aprendizado. Foi quando aprendi que o capitalismo pode ser inclusivo, generoso, positivo e, sobretudo, Consciente.
Isso não quer dizer que tenhamos que tratar empresas como circos. Mas que o espírito criativo e colaborativo dessas trupes sem endereço fixo podem nos ensinar muito. Principalmente que, para o espetáculo continuar, precisamos respeitar e valorizar a todos: o dono do circo, os artistas, o público, os trabalhadores temporários, a prefeitura, os fornecedores locais e o meio ambiente onde tudo isso está acontecendo. Todos recebem a sua parte nessa troca. Seja em forma de risadas, dinheiro, pipoca, suor, música ou lucro.
Tudo isso é valor.
*José Maurício Coelho é Conselheiro da Filial Regional do Capitalismo Consciente em Santa Catarina.
p.s. Na verdade, não vivi essa experiência e nem morei nessa cidadezinha. Foi inventada, assim como o circo e os demais personagens, porque eu gosto de criar histórias. Às vezes só por criar e outras vezes para dizer algo, como nesse caso. Muito se fala de ESG, de negócios sustentáveis, de economia inclusiva e tudo mais. Mas há muitos casos práticos que já existiram e continuam existindo na vida simples das pessoas e das comunidades. É só dar uma olhada. Talvez estejamos complicando demais as coisas.