Reindustrialização 4.0

Atualização de paradigmas para o desenvolvimento próspero e sustentável

Alex Marson*

Quando meus antepassados chegaram ao Brasil, em 1887, foram acolhidos no então Núcleo Colonial São Bernardo. O lugar, que vivera do tropeirismo por sua posição estratégica no caminho do mar, precisava se reinventar quando os trens substituíram as mulas no transporte do açúcar.

A capacidade de reinvenção do ser humano começou a ser desenvolvida e posta à prova muito antes do mundo moderno. A transição dos serviços para a agricultura, na localidade, deu-se com o intenso fluxo migratório de estrangeiros. Muitos, como meus tataravós, fugiam da fome na Itália para ocupar núcleos coloniais recém-criados pelo governo imperial brasileiro.

Seus descendentes fizeram parte de outra impactante transição, iniciada nos anos 1950, com o desenvolvimento do setor industrial que transformou a pequena freguesia em uma grande cidade, integrante de uma das dez regiões metropolitanas mais populosas do mundo.

A industrialização: global e local

O advento da indústria é um marco importante na história. O modelo de produção capitalista impulsionou, a partir da virada do século 18 para o 19, uma era de forte crescimento econômico, que se espalhou a partir da Europa protestante.

O Brasil Colônia, no entanto, assim como a própria Itália, havia ficado à margem dessa transformação tecnológica e social. Enquanto a Europa fervia com a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, os Estados Unidos conquistavam sua independência, e Adam Smith publicava “A Riqueza das Nações”, aqui no Brasil todas as pequenas fábricas eram fechadas por lei, para evitar que os produtos da Colônia criassem concorrência com os do Reino.

Mesmo com as proibições relaxadas, e passados alguns surtos industriais, o Brasil continuou a depender exclusivamente da economia agrícola, pelo menos até a Era Vargas. Nesse período, os avanços na infraestrutura de transportes e energia, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o início da formação das indústrias de base (evidenciado pela fundação da Vale e da CSN, na década de 1940), possibilitaram que a nossa indústria crescesse e se solidificasse.

Juscelino Kubitschek, com sua visão desenvolvimentista de fazer “cinquenta anos em cinco”, criou as bases da complexa cadeia produtiva automotiva, que acelerou a industrialização brasileira. São Bernardo do Campo foi a escolha de grandes montadoras como Ford, Mercedes-Benz, Scania, Volkswagen, e fabricantes de autopeças como Perkins, Gemmer e Mangels.

O número de habitantes saltou de 29 mil em 1950 para 425 mil em 1980, dos quais 292 mil eram migrantes. Terras dos núcleos coloniais deram lugar a loteamentos, e áreas de morros, periferias e mananciais foram ocupadas, em um crescimento tão acelerado quanto desordenado. O impacto, observado em estudo de 2010, era de mais de 80 mil unidades habitacionais em assentamentos precários ou irregulares, ou 1/3 do total do município.

Assim como nessa história regional, também globalmente a industrialização foi o motor do desenvolvimento econômico responsável por alavancar a produtividade, a inovação tecnológica, e provocar significativas mudanças sociais.

A produção em massa elevou o consumo e os padrões médios de vida e contribuiu com a prosperidade fomentada pelo modelo capitalista. O processo, no entanto, também gerou externalidades sociais e ambientais que colocam em xeque a sustentabilidade do modelo.

Na comunidade do Capitalismo Consciente, compartilhamos a noção de que “o capitalismo de livre iniciativa é o sistema mais poderoso de cooperação social e progresso humano já concebido. É uma das ideias mais convincentes que nós humanos já tivemos”. A crença que nos une, no entanto, é a de que “podemos aspirar a muito mais”. Percorremos um longo caminho, mas há muito a ser feito…

Lições da história

Pode-se afirmar que o sistema capitalista se estabeleceu predominantemente com base em um paradigma egocêntrico, no qual interesses próprios, regulados pela “mão invisível” do mercado, compõem o motor do bem geral. Essa é a visão apresentada por Adam Smith quando escreveu: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelos próprios interesses.”

O pensamento é base para o desenvolvimento da crença na supremacia dos acionistas. Nessa perspectiva simplista, refletida no artigo de Milton Friedman publicado no New York Times em 1970, a única responsabilidade social das empresas seria maximizar seus lucros.

A ideia sintetiza o corrimão que orientou as escolas e a prática dos negócios nas últimas décadas. A insatisfação dos investidores com os retornos nos anos 1970, devido à redução no ritmo de crescimento econômico global após as décadas prósperas do pós-guerra, alimentou esse ciclo.

Com esse pensar egoísta, interesses individuais alimentaram relações destrutivas entre grupos de stakeholders, nas quais a ganância rouba a possibilidade da geração de valor alavancada pela colaboração, o grande trunfo da sociedade humana.

A construção da relação das pessoas com as organizações industriais se deu, portanto, com base em uma visão reducionista, que olhava para partes separadas em sistemas interdependentes.

Empresas são sistemas sociais em que indivíduos e coletivo interagem. Olhando para empresas e trabalhadores como partes separáveis, o conflito era muito vivo quando conheci o ambiente da indústria, apresentando-me aos 14 anos em uma fábrica da Volkswagen que empregara mais de 20 mil pessoas.

Em São Bernardo do Campo, paralelamente ao crescimento industrial e urbano, desenvolveu-se um sindicalismo fortemente organizado e com elevado poder reivindicatório, que levou a cidade, durante as crises econômicas do final dos anos 1970 e início dos 1980, a ser o palco de alguns dos mais incisivos movimentos grevistas da história do país.

A história do ser humano na indústria passou por períodos conflituosos. A própria data em que celebramos o Dia do Trabalhador remonta ao 1º de maio de 1886, marcado por sangrentas lutas por condições de trabalho minimamente humanas, para as massas que a Revolução Industrial acumulava nas grandes cidades.

Mais de um século antes, o próprio Adam Smith postulava que “nenhuma sociedade pode ser florescente e feliz, se a maioria de seus membros é pobre e miserável”. Outra frase do pai do capitalismo também nos convida à reflexão sobre a forma que temos escolhido praticá-lo: “Por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente há alguns princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte de outros, e considerar a felicidade deles necessária para si mesmo, embora nada extraia disso senão o prazer de assistir a ela”.

Ele deu a dica: podemos aspirar a muito mais! No momento atual da evolução humana, conquistamos coletivamente uma abundância que talvez só tenha precedentes em sociedades primitivas de caçadores coletores. Reconquistamos a possibilidade de conexão com necessidades superiores da natureza humana, e podemos almejar a autorrealização buscando a receita de Adam Smith: o prazer de assistir à felicidade de outros.

Os valores da 4ª Revolução Industrial

O sistema industrial guiado pela “mão invisível do mercado” foi muito eficiente em acelerar a inovação e a transformação do mundo em que vivemos. Outros momentos de transformação acelerada passaram a ser chamados de novas revoluções industriais.

A segunda veio com a eletricidade e a aceleração da produção em massa, no século 19. Então a terceira, no século 20, com a eletrônica e a tecnologia da informação habilitando a automatização.

Hoje narramos, não em retrospecto como as anteriores, mas conforme a construímos, a Quarta Revolução Industrial. A convergência das tecnologias habilitadoras da Indústria 4.0 catalisa a transformação exponencial que marca, do ponto de vista tecnológico, a transição para uma sociedade de abundância.

Chegamos até ela, no entanto, apoiados em crenças de escassez, com uma visão predominantemente materialista e egocêntrica, assumindo que aquilo que nos levou a essas crenças também se aplicará no futuro. Crenças são suposições que consideramos verdadeiras. Muitas delas são baseadas em experiências vividas no passado, em um mundo que em grande parte não existe mais.

A transformação que precisamos não poderá ser fundamentada nessas crenças, mas em valores que nos engajem para colocar nossas aspirações e intenções no mundo. Valores que traduzam o que verdadeiramente importa, individual e coletivamente.

À medida que nossa condição de vida muda, à medida que evoluímos, nossos valores também mudam. Os valores da 4ª Revolução Industrial são outros! O modus operandi das organizações precisa também acompanhar a jornada de evolução humana, para que ela se mantenha relevante e próspera.

Essa consciência permite refletir sem anacronismos sobre o que nos trouxe até aqui, sem a projeção de valores de hoje no passado, e sem a limitação de crenças que não nos servem mais.

Quando o mundo muda, ficamos cegos. A evolução da moral pela ética, pela bússola interior da consciência, nos guia na jornada da excelência humana. Fornece novas lentes que permitem navegarmos na complexidade do mundo atual.

A atualização do sistema operacional das organizações

Nossa evolução não terminou quando passamos a andar sobre duas pernas.

>>Raj Sisodia

Com base nos valores que suportaram a 1ª Revolução Industrial, o trabalho deveria ser algo a que nos submetemos para sobreviver. Hoje, talvez seja impossível engajar pessoas senão por um propósito compartilhado.

O desperdício de potencial humano é demonstrado em pesquisas como a realizada pelo Instituto Gallup, que indicou que globalmente apenas 20% das pessoas estão engajadas à organização que servem, ao seu trabalho.

Com todo o mérito na satisfação de outras necessidades, os valores que guiaram a Revolução Industrial fizeram com que o trabalho perdesse o caráter humano. E o trabalho que não faz sentido em uma perspectiva individual nunca foi capaz de inspirar nosso melhor.

As virtudes humanas florescem em um ambiente no qual pessoas se conectam por motivos mais elevados e cada um se enxerga protagonista de seu projeto pessoal e pertencente a um grupo que constrói coletivamente algo que o indivíduo perceba ser valioso.

Com a abundância de recursos materiais habilitada pela tecnologia, passamos a nos guiar por necessidades que somente serão supridas por pessoas que levantem da cama inspiradas para trabalhar e, ao fim do dia, estejam satisfeitas com o trabalho que realizaram. Seres humanos que, com suas necessidades básicas supridas, encontram e trilham seu caminho à autorrealização – o exercício voluntário de suas virtudes.

Esse trabalho significativo não é um luxo. É a maneira de dar conta da inabilidade coletiva que temos demonstrado ao lidar com a complexidade do mundo, enquanto apoiados em princípios de autoridade, comando e controle, competição, medo, separatividade.

O próximo capítulo da indústria brasileira

Carecendo de uma estratégia de desenvolvimento socioeconômico consistente, o Brasil é o penúltimo colocado no ranking geral de competitividade, de acordo com estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) realizado em 2020.

Sem uma política industrial, e com investimentos pífios em ciência e tecnologia, o país teve como consequência a terceira maior desindustrialização entre 30 países desde 1970, conforme conclui estudo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) de 2019. O levantamento constata ainda que a participação da indústria de transformação no país atingiu o menor patamar desde 1947, quando havíamos iniciado o ciclo de agregação de valor às nossas commodities.

O atual momento de conjunção do rearranjo global das cadeias produtivas, com a acelerada transformação no panorama social, econômico e tecnológico, oferece, no entanto, uma significativa janela de oportunidade para quem for capaz de perceber novas possibilidades que outros deixaram escapar.

A tecnologia que desenvolvemos tem o potencial de erradicar ou de potencializar os problemas que enfrentamos coletivamente. Caminhamos a passos largos na transformadora convergência de tecnologias digitais, físicas e biológicas. Robôs integrados em sistemas ciber físicos, interconectados pela internet das coisas, com recursos de inteligência artificial, big data, computação em nuvem, entre outras tecnologias disruptivas, estão transformando o mundo.

São nossas as escolhas que farão com que essa transformação esteja a serviço das pessoas.  Isso começa pela clareza de que a mais alta tecnologia não substituirá a potência humana na construção de soluções para nossos problemas.  

Mais do que da simples adoção de novas tecnologias, os resultados extraordinários que podemos produzir nesta era de transformação exponencial dependem da transformação interna das pessoas. Da mudança de modelo mental para abraçar o pensamento sistêmico, que traz clareza à necessidade de harmonização de interesses de partes interrelacionadas em sistemas colaborativos.

A indústria brasileira pode encarar esse dilema, construindo soluções prósperas e sustentáveis, ou negá-lo, fechando-se e enfrentando as consequências da manutenção do ciclo que pode torná-la irrelevante.

O mundo em que indivíduos são respeitados por investirem suas virtudes na construção da realidade que desejam, convivendo em relações orgânicas de colaboração, que potencializam nossas capacidades coletivas, parece distante.

Como distante também parece o tempo em que algoritmos tomam decisões nas fábricas, por motivos desconhecidos pelo homem, e as implementam de forma autônoma no sistema de produção.

Talvez mais distante que a chegada de camponeses europeus poderia parecer para o ferreiro que consertava ferraduras das mulas que levavam açúcar pela Serra do Mar. Ou para os jovens Luigi e Maria, meus tataravós, imaginarem que a terra que cultivavam seria, um dia, parte de uma metrópole com milhões de habitantes.  

Estamos, no entanto, como diz Klaus Schwab, “a bordo de uma revolução tecnológica que transformará fundamentalmente a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. Em sua escala, alcance e complexidade, a transformação será diferente de qualquer coisa que o ser humano tenha experimentado antes”.

Perceba primeiro, então se apresente com valores apropriados e paradigmas atualizados. Liderar é lidar com disrupção, não somente tecnológica, nem tampouco limitada ao contexto de times ou organizações. Nossa melhor versão de futuro emerge de ecossistemas, de constelações de stakeholders conectados em colaboração, para encontrar nos maiores problemas do mundo as melhores oportunidades de negócios.

* Alex Marson é CEO e membro do Conselho de Administração da CHRISTAL, holding com 50 anos de história e presença industrial no Brasil e na Europa. Em mais de 30 anos na indústria, liderou unidades de negócios de grandes empresas no Brasil, EUA e Europa, até encontrar e se apaixonar pelo universo das empresas familiares em Santa Catarina. Atualmente lidera a filial do Instituto Capitalismo Consciente Brasil no estado, com o propósito de inspirar caminhos conscientes para as organizações.

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